segunda-feira, 26 de março de 2012

COGNIÇÃO JUDICIAL — NOVO CPC — BINÔMIO, TRINÔMIO OU QUADRINÔMIO


Por: Zulmar Duarte

Advirto, desde o início, o presente post não surgiu de alguma controvérsia atual, nem apresenta, muito menos, qualquer ideia nova, sendo, verdadeiramente, uma tomada de posição para conforto intelectual — Novo CPC[1].

Todos sabem que, a partir de BÜLOW, distanciamos o direito processual do direito material, passando a vê-lo de forma integral e independente, com consequente autonomia.

Mesmo as mais contemporâneas[2] compreensões sobre a natureza jurídica do processo, às vezes inserindo no seu contexto o procedimento em contraditório, não negam a existência de uma relação jurídico processual à moda de BÜLOW:

“Se o processo é, portanto, uma relação jurídica apresenta-se na ciência processual problemas análogos aos que surgiram e foram resolvidos, a respeito das demais relações jurídicas. A exposição sobre uma relação jurídica deve dar, antes tudo, uma resposta à questão relacionada com os requisitos a que se sujeita a origem daquela. É necessário saber entre quais pessoas pode ter lugar, a qual objeto se refere, que fato ou ato é necessário para seu surgimento, quem é capaz ou está facultado para realizar tal ato.         

Estes problemas devem colocar-se também na relação jurídica processual e não se mostram a seu respeito menos apropriados e fecundos do que se mostraram já nas relações jurídicas privadas. Também aqui eles dirigem sua atenção a uma série de importantes preceitos legais estritamente unidos. (…)

Estas prescrições devem fixar – em oposição evidente com as regras puramente relativas à seqüência do procedimento, já determinadas – os requisitos de admissibilidade e as condições prévias para a tramitação de toda relação processual. Elas determinam entre quais pessoas, sobre que matéria, por meio do que atos e em que momento se pode constar no processo. Um erro em qualquer das relações indicadas impediria o surgimento do processo. Em suma, nesses princípios estão contidos os elementos constitutivos da relação jurídica processual: idéia aceita em partes, designada com um nome indefinido. Propomos, como tal, a expressão: ‘pressupostos processuais’.”[3]

A fortiori, antes de analisar a relação jurídica de direito material, o magistrado deve verificar se presentes os pressupostos (ou supostos) da relação jurídica processual (processo), como expressa o atual artigo 267, inciso IV, do Velho CPC (artigo 472, inciso IV, do Novo CPC).

Esse é o primeiro termo da questão.

É que, como também de conhecimento corrente, o legislador pátrio de 1973 adotou a teoria do direito eclético de ação, elaborada por LIEBMAN, na sua célebre Prolusione, em 1950.

Fixou, dito professor, umas condições, ou uns tantos requisitos — categorias jurídicas —, para admitir o exercício da ação. Tais requisitos se denominam, tradicionalmente, de condições da ação.

“são os requisitos de existência da ação, devendo por isso ser objeto de investigação no processo, preliminarmente ao exame do mérito (ainda que implicitamente, como costuma ocorrer). Só se estiverem presentes essas condições é que se pode considerar existente a ação, surgindo para o juiz a necessidade de julgar sobre o pedido (domanda) para acolhê-lo ou rejeitá-lo. Elas podem, por isso, ser definidas também como condições de admissibilidade do julgamento do pedido, ou seja, como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência a situação concreta (concreta fattispecie) deduzida em juízo.          

A ausência de uma delas já induz carência de ação, podendo ser declarada, mesmo de ofício, em qualquer grau do processo” [4].

A carência de ação se dá precisamente quando não presentes uma de suas condições, a saber, a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade de parte e o interesse processual. São estas condições para o julgamento do mérito da causa[5], por isso devem ser objeto de averiguação preliminar — “requisitos de admissibilidade para o julgamento do mérito”[6].

Nessa toada, no nosso ordenamento processual existem duas questões prévias a análise do mérito, quais sejam, os pressupostos processuais e as condições da ação.

Assim, numa perspectiva abrangente, todo o magistrado teria como objeto de trabalho, labor processual, uma cognição tripartida, um trinômio (triologia ou, mesmo, quadrinômio[7]) de questões, isto é, a regularidade do processo (pressupostos processuais), as condições da ação e a pretensão.

Todavia, nada justifica a manutenção desses standards no tema, já que o ordenamento processual vigorante, bem como o projetado em sua substituição, não diferenciam o momento e as consequências na aferição dos pressupostos processuais e das condições da ação.

Quer dizer, são estabelecidos momentos processuais para análise e reanálise conjunta dos pressupostos processuais e das condições da ação (artigos 284, 295 e 329 do Velho CPC — artigos 295, 305 e 340 do Novo CPC), sem prejuízo de sua verificação a qualquer tempo (artigo 245, 267 e 301 do Velho CPC — artigos 253, 327 e 472 do Novo CPC).

Outrossim, os pressupostos processuais e as condições da ação recebem, enquanto efeito e eficácias, o mesmo tratamento, eis que adjudicado idêntico conteúdo sentencial as referidas hipóteses (artigo 267 do Velho CPC[8] — artigo 472 do Novo CPC).

Assim, melhor dividir operacionalmente, tal qual se faz na teoria geral dos recursos, essas questões em dois planos cognitivos, um deles para as questões de admissibilidade e outro para questões de mérito, englobados, na primeira perspectiva (questões de admissibilidade), os pressupostos processuais e as condições da ação.

Propugna DINAMARCO:

“A doutrina brasileira recepcionou com boa dose de entusiasmo a concepção de um trinômio de questões a serem apreciadas pelo juiz no processo de conhecimento, representado pelas questões referentes às condições da ação, aos pressupostos processuais e ao meritum causae (Liebman). Os alemães nunca foram apegados a esse trinômio e falam somente em pressupostos processuais ao designarem os requisitos para chegar ao provimento pretendido. Para eles, há o mérito e os pressupostos processuais. Assim também é a tendência dos doutrinadores italianos nas últimas décadas” [9].[10]

DIDIER JUNIOR:

“De fato, o mais correto seria dividir as questões em questões de mérito e questões de admissibilidade. Dois são os juízos que o magistrado pode fazer em um procedimento: o juízo de admissibilidade (validade do procedimento; aptidão para prolação do ato final) e o juízo de mérito (juízo sobre o objeto litigioso). Se apenas há dois tipos de juízo, não há sentido distinguir três tipos de questão: ou é questão de mérito ou é de admissibilidade, tertium non datur (princípio lógico do terceiro excluído).”[11]

Se a ideia do Novo CPC é simplificar o processo, melhor que essas questões recebessem tratamento conjunto, sob o dístico pressupostos de admissibilidade da demanda, deixando a cargo da doutrina sua diferenciação e exemplificação.

Com isso não pretendemos sobrelevar as questões de admissibilidade, posto que defendemos a consunção processual (http://zulmarduarte.com/2011/04/consuncao-processual-—-recurso-especial-e-extraordinario-—-novo-cpc/ ) e a análise das condições da ação in status assertionis (http://zulmarduarte.com/2011/04/novo-cpc1-e-a-carencia-de-acao/ ).

Enfim, alguém poderia objetar dizendo que se estaria a equiparar coisas diversas, eis que as condições da ação estão ligadas, em alguma medida, ao mérito. Contudo, alguns pressupostos processuais também são retirados da relação jurídica material (mérito), como, por exemplo, a competência.


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[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=56C6BCAFF4F7CA5C9CC57B9A0F167124.node1?codteor=831805&filename=PL+8046/2010 Acesso em: 13 fev. 2011) , com  a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”.

[2] Com a ressalva do posicionamento de GOLDSCHMIDT, que ao apresentar sua teoria da “situação processual” rejeita a existência de qualquer relação jurídico processual (GOLDSCHMIDT, James, Princípios gerais do processo civil, p. 20).

[3] BÜLOW, Teoria das exceções e dos pressupostos processuais, p. 8/9.

[4] LIEBMAN, Manual de direito processual civil, 1984.

[5] WATANABE, Da cognição no processo civil, 1999.

[6] FREIRE, Condições da ação, 2000.

[7] “A esse teor de considerações, no plano de classificação das questões que tocam ao juiz enfrentar, no processo civil, já não se pode falar em trinômio, mas em quadrinômio: pressuposto processual, supostos processuais, condições de ação e mérito da causa.” (NEVES, Estrutura fundamental do processo civil, p. 199).

[8] A única distinção é no tocante ao empeço a repropositura da demanda, relativa aos pressupostos processuais adjetivados como negativos (artigo 268 do Velho CPC.

[9] DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 620.

[10] À sua vez, SCHÖNKE versa sobre pressupostos processuais e impedimentos processuais, tratando da legitimação para causa como mérito. (Direito processual civil, p. 218).

[11] DIDIER JUNIOR, Pressupostos processuais e condições da ação, p. 72.

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